às cegas

•março 1, 2012 • Deixe um comentário

 

percorreu com a ponta dos dedos os longos cabelos molhados, da raiz até as pontas, desembaraçando demoradamente mecha por mecha. não tinha pente. era assim que escovava os cabelos.

desfez o nó da toalha velha e já um pouco áspera para trocá-la por algo mais apresentável. tateou a cama em busca do vestido quente de bem passado e nele mergulhou, deixando que a seda acariciasse seus quadris ainda nus. a sensação era tão inebriante que pensou duas vezes se colocaria mesmo algo por debaixo. achou por bem não abusar na ousadia e escolheu uma renda antialérgica, mas francesapara não perder o glamour.

deslizou macio o batom pela boca e pegou os anéis em cima da cômoda, onde ficavam protegidos de descascar sob a água clorificada e cheia de impurezas das grandes metrópoles. passou a mão pelas próprias curvas sentindo-se divina, respirou fresco os últimos instantes de autoencantamento e finalmente colocou o par de óculos.

 

25 de fevereiro de 2012

•fevereiro 25, 2012 • 1 Comentário

 

precisando desesperadamente ser surpreendida novamente pela leitura, acordei e fui ao sebo. procurava um zweig, mas voltei para casa com um nabokov, o que nunca é coisa ruim. 

como dei para ter paranóias de idade, tenho me acostumado a ficar nua em casa sempre que estou sozinha, que é para não ter modo de ignorar os efeitos do tempo e jamais a desculpa de um dia me olhar no espelho e ver que, “de repente”, ele passou. ao menos conheço todas as curvas mal-feitas, as linhas disformes e as gorduras em excesso. talvez os vizinhos também.

foi assim que me deitei na cama de hóspedes, embaixo da janela ensolarada, para começar a ler o original de laura. assim, em minúsculo como desambição do cotidiano. foi assim que me deparei, à página 35, com uma, apenas uma, no livro todo, frase sublinhada:

“sua refinada estrutura óssea deslizava de imediato para um romance – transformava-se de fato na estrutura secreta daquele romance, além de sustentar uma porção de poemas”

 

amora púrpura

•fevereiro 12, 2012 • Deixe um comentário

 

“amora, mamãe”, disse a pequena apontando o dedinho rosa para o alto da árvore. insistia em fazer as coisas mais encantadoras nos piores momentos. a mãe fingiu não ouvir enquanto seguia em passos apressados repetindo a si mesma ” sempre em frente, sempre em frente”. com a outra mão, como quem afagava o bichinho de pelúcia mais querido, a menina enrolava seus cachos avermelhados. os da mãe, porque os seus eram dourados, da cor que toda gente que se preze imagina os cabelos de anjo.

pensou nisso e logo sacudiu a cabeça para tirar aquela imagem que não a levaria a lugar nenhum, afinal a decisão estava tomada. atravessou o sinal amarelo em direção à casa de janelas laranja e telhado de telhas coloniais, pálida mas feliz, pois sua vida finalmente era só certeza.

“a nuvem, mamãe” falou ainda mais encantadora, fazendo doer o coração duro de pedra e remédios da jovem mãe. mas ela não amolecia ante o olhar acinzentado da menina. parou em frente à casa, tocou a campainha e esclareceu sensata “meu amor, é para o seu bem”, dando-lhe um beijo na teste e entregando-a à moça de uniforme branco.

no aniversário de 15 anos, rosa esperou todos adormecerem e, à revelia de amanda, foi finalmente investigar sua ficha nos arquivos da instituição. começava a desaparecer a lembrança da ruiva partindo rua afora, esvoaçante em sua saia púrpura.

 

dístico elegíaco

•fevereiro 9, 2012 • Deixe um comentário

 

apaixonei-me por ela na primeira vez em que a vi cortando um pedaço de queijo. descobri ali uma nova dimensão de delicadeza. depois disso, passei a prestar atenção em seu andar, na maneira como montava as garfadas, em como passava condicionador nos cabelos durante o banho. nada era trivial, absolutamente tudo importava. quando íamos a alguma cachoeira, notava seus pezinhos pulando de pedra em pedra, em um balanço harmônico e calculado, como numa dança. arrumava a cama meticulosamente, colocando em cada dobra do lençol um mundo de regras e retas.

mesmo assim não conseguia nunca dizer um só elogio.

 

natal

•dezembro 29, 2011 • Deixe um comentário

 

deitada no sofá, virei para o lado

e descobri, ali naquele canto, que papai noel não existia

 

26 de novembro de 2011

•dezembro 18, 2011 • Deixe um comentário

 

acordei hoje com a seguinte sms:

casamento é uma soma de afetos, uma subtração de liberdades, uma multiplicação de problemas e uma divisão de bens.

número de origem: um 061 jamais antes visto…

 

grampos

•dezembro 13, 2011 • Deixe um comentário

 

ela deixava grampos em todos os cantos da casa e estava sempre a reclamar da falta de grampos. de seus longos cabelos loiros paravam sempre de dois em dois na bandeja das bebidas, ao lado do saleiro, na mesa de centro, na pia do banheiro e no meio dos lençóis.

 

15 de novembro de 2011

•novembro 15, 2011 • Deixe um comentário

 

Não sei exatamente o que significa, mas às vezes fecho os olhos e ouço aquelas músicas todas que, embora possa ouvir novamente, jamais soarão igual. Os timbres do coração e da lembrança são definitivamente outros. 

 

pequena história sociológica do século XX

•novembro 5, 2011 • Deixe um comentário

A grande pergunta da contemporaneidade:

Por que os hippies permaneceram e os punks não?

Simples. O punks batiam nos hippies, que por isso se associaram e mereceram proteção do Estado que, por sua vez, dizimou os punks que, por fim, ficaram apenas como memória distante da história sociológica do século XX.

madalena e victoria

•outubro 12, 2011 • Deixe um comentário

 

Um dia uma ficou bronzeada além da conta e teve que ouvir a outra caçoar-lhe durante o resto do verão. Tinham sete.

Antes, brincavam de jornalista e detetive, de cantar paquitas e fazer cabanas.

Desde os tempos imemoriais, na época pré-piolho, passando por uma contingente sucessão analógica de namorados, simultaneidade de doenças e empregos abandonados em empresas de grande porte, suas vidas eram estranhamente conectadas.

Adolescentes, separaram-se por ano e meio, distanciadas por uma serra do mar e outro bocado de cerrado.

Mais tarde um pouco, foi por quilômetros de terra e depois oceano.

E brigas, bate-bocas, um arranhãozinho logo abaixo do olho. E brigadeiros, noites em claro, sereias na piscina.

A vida passava e tinham 40 com três filhos que se misturavam, mal sabendo quem era de quem. Em 20 vinham netos, poucos, pois não eram moças de bolos e missas não. Eram sim de jantares e filmes e conversas infindáveis sobre qualquer séria futilidade que porventura lhes atinasse a atenção e que não seguiam a menor lógica ou padrão.

Ninguém sabia os segredos e planos que tinham aquelas meninas.